OCUPANDO O LATIFÚNDIO ELETROMAGNÉTICO

Rádios Livres Brasil — Breve História (1ª parte)

Nesses tempos de preparação para a Semana de Resistência Osama Bin Rap “Holocausto Urbano” — uma semana de debates pesados e sensacionais, que se encerrará na sexta-feira (dia 18 de maio) com uma grande festa para as pessoas que curtem ritmo e poesia —, pensamos aqui que seria importante também divulgar uma breve visão histórica, escrita por Rodney Brocanelli,  sobre a atuação das rádios livres no Brasil. Essa é a primeira parte deste artigo, que publicaremos aos poucos nos próximos dias e semanas.

Nunca é demais lembrar que, como já dissemos aqui sobre a história das rádios livres europeias, uma das melhores formas de continuarmos a renovação, crítica e superadora, de um movimento autônomo passa pelo conhecimento de sua história de luta e debates. Eis aí, portanto, uma parte dessa tarefa coletiva.

Fica aqui um lembrete (AVISO IMPORTANTE!), que tem tudo a ver com esse nossa luta autogestionada, sem financiamento e sem parcerias com instituições privadas: Durante todos os dias da Semana do Osama Bin Rap estaremos recolhendo roupas, brinquedos, alimentos e produtos de higiene pessoal para os guerreiros e as guerreiras da Favela do Moinho! Não é ingresso para entrar, mas é importante ajudar a rapa que ta precisando.

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INTRODUÇÃO

O texto a seguir não tem a pretensão de contar a história completa da radiodifusão livre no Brasil. Ele foi escrito em 1998, para um trabalho de faculdade. Além do mais, é analitico em demasia. Porém, sua publicação pode servir para ser um ponto de partida a eventuais pesquisadores que desejam saber mais sobre o tema. Volta e meia recebo mails de estudantes de Comunicação Social solicitando informações a respeito do tema. Não há grande bibliografia disponível e a obra da qual usei grande parte das informações, “Rádios Livres, O Outro Lado da Voz do Brasil” sequer foi lançado em livro por razões que desconheço, além de estar desatualizada.

Um mérito desse texto, ao meu ver, é contar, ainda que de passagem, um pouco da história da Rádio Onze, emissora da qual fiz parte entre 1995 e 1997.

Como já disse, esse texto é de 1998, pretendo em breve retomá-lo do ponto de onde parei e contar o que aconteceu de lá para cá. Críticas e sugestões são muito bem-vindas. Boa leitura. (Rodney Brocanelli, inverno de 2001)

RÁDIOS LIVRES NO MUNDO

O conceito de rádio pirata nasceu na Inglaterra. No final da década de 50 algumas emissoras foram montadas e transmitiam a partir de barcos ancorados na costa inglesa para burlar a legislação.

Uma das emissoras mais emblemáticas dessa época foi a Rádio Caroline, criada para combater o monopólio da estatal BBC e veicular o emergente rock and roll.

Na Itália, esse tipo de rádio se adequa a um outro perfil, mais politizado. É nesse país que nasce o conceito de rádio livre. Faziam muito jornalismo, veiculavam programas de debates. Eram vinculadas a grupos de base, minorias e marginalizados. Também na Itália, as rádios livres foram criadas para combater outro monopólio, desta feita o da RAI.

Na França, não foi diferente, tanto que em 1981, o presidente socialista François Mitterand assinou um decreto de regulamentação.

Mesmo nos EUA, que aparentemente possui a legislação mais liberal no setor de comunicações, rádios livres ocupam espaços no ar desde a década de 20.

E os ventos de liberdade não tardariam a chegar aqui no Brasil.

RÁDIOS LIVRES NO BRASIL

Antes da história da rádios livres no Brasil propriamente dita, é interessante falar das primeiras transmissões não-oficiais do país. Os primeiros vestígios datam de 1931. O publicitário Rodolfo Lima Martensen monta uma emissora não-oficial na cidade de São Pedro, estado do Rio Grande do Sul.

A sua rádio transmite por dois finais de semana. No dia seguinte a segunda transmissão, o chefe da Estação Telegráfica, o equivalente ao Dentel da época, ao contrário do que se poderia imaginar, levou seu apoio a iniciativa, com a disposição de transforma-la em oficial. Nasce assim, a Rádio Sociedade do Rio Grande do Sul e Martensen acaba ocupando o cargo de diretor-geral.

A Rádio Cultura de São Paulo como a conhecemos hoje também nasceu como uma emissora não oficial. Ela foi ao ar em 1933, com o prefixo de DKI-A Voz do Juqueri. A estação funcionava numa garagem.

Após a intervenção da polícia, os seus mantenedores decidiram legaliza-la. O processo não foi muito difícil e no dia 16 de junho de 1936 nasce a Rádio Cultura de São Paulo.

O hoje consagrado apresentador Milton Neves revelou numa entrevista à revista Sexyway que começou sua carreira numa rádio não-oficial. Foi em 1967 na Rádio Continental de Muzambinho, sua terra natal. A emissora foi cassada no ano seguinte.

Outro profissional de destaque na mídia eletrônica também participou de transmissões clandestinas de rádio, ainda que de forma involuntária, segundo a revista Imprensa.

Em 1947, um garoto de 15 que trabalhava no sistema de auto-falantes de Cordeirópolis (SP), sua terra natal, decidiu transmitir os jogos de futebol em sua cidade. A idéia era usar um transmissor de rádio para fazer o trafego do sinal. Ele conseguiu um transmissor de rádio, improvisou uma antena sobre um bambuzal e do alto da carroceiria de um caminho, o adolescente começou a sua irradiação. Porém, o sinal da transmissão acabou sendo captado nos aparelhos receptores da cidade. O então chefe do Departamento de Correios e Telégrafos da região nesse caso chamou a polícia. O jovem percebeu a aproximação das autoridades, desmontou tudo e fugiu.

Muito mais tarde, ele conseguiu voltar para a casa. O garoto seguiu carreira no rádio e na televisão, se tranformando numa voz e num rosto conhecido do grande público. Seu nome? Léo Batista, apresentador dos Gols do Fantástico, da Rede Globo.

O marco inicial da história das rádios livres segundo a jornalista Marisa Meliani é o ano de 1971. Um adolescente de 16 anos, Eduardo Luiz Ferreira Silva, amante de eletrônica, montou um transmissor de 15 watts na cidade de Vitória, Espírito Santo. A rádio é batizada com o nome de Paranóica FM.

Primeiro, a estação começa a operar apenas no quarteirão. Depois, o alcance cresce e a Paranóica passa a ser sintonizada em toda a cidade.

Durante seis dias, a Rádio Paranóica transmitiu uma programação que misturava música e críticas a figuras da cidade de Vitória. A festa dura pouco. A partir de uma denúncia, a polícia foi até a sede da emissora. Não foi difícil localiza-la, uma vez que o telefone do local onde ficavam os estúdios era dado no ar. Eduardo e seu irmão, que ajudava nas transmissões, são presos. O que era uma brincadeira de crianças foi considerada pelas autoridades da época como uma “armação dos comunistas para desestabilizar o regime”. Vale lembrar que em 1971, o Brasil vivia o auge do militarismo.

Mesmo com a prisão e todas os seus desdobramentos, Eduardo continua até hoje a colocar emissoras livres no ar.

Ainda que com todos os problemas políticos, emissoras livres continuaram sendo colocadas no ar durante a década de 70. Mais precisamente em 1976, entra no ar a Rádio Spectro, em Sorocaba. As transmissões duravam duas horas quase que diariamente. Seu responsável era um garoto de 14 anos.

Vale notar que até então quem escreveu a história das rádios livres no Brasil foram adolescentes, cujo principal objetivo era a diversão.

A Spectro funcionava na casa do pai do garoto. A programação era eminentemente musical e a rádio recebia pedidos musicais dos ouvintes. Para tanto, era dado um telefone de um vizinho. Mesmo assim, com esse caráter clandestino, a emissora recebia cerca de 20 telefonemas por dia.

Sorocaba seria o berço de uma nova fase da história das rádios livres no Brasil. Em 1981, o número de estações aumentaria para 6: Estrôncio 90, Alfa 1, Colúmbia, Fênix, Star e Centaurus.

A multiplicação de emissoras acabou chamando a atenção das autoridades e de setores da grande imprensa. O jornal “Cruzeiro do Sul”, começou uma campanha sistemática contra as rádios clandestinas. A gritaria do jornal, levou o Dentel a fazer incursões pela cidade á caça dos piratas.

Mesmo com tanta coisa conspirando contra, mais emissoras livres foram colocadas no ar. Em janeiro de 1983, quarenta e duas rádios estavam funcionando. A explicação para tal fenômeno era simples.

Sorocaba é uma cidade que possui muitos técnicos (e estudantes) em eletrônica. Com a chegada das férias escolares, houve a disponibilidade necessária para que esses jovens se dedicassem a suas rádios particulares. A principal fonte de informação para a montagem dos transmissores caseiros eram as revistas importadas que traziam esquemas para a construção. As peças eram compradas em qualquer loja especializada.

O movimento de rádios livres em Sorocaba não tinha uma base ideológica no seu início. Depois de um tempo de existência, o discurso adotado por seus integrantes era o de “revolta contra o monopólio das FMs”. Em outras palavras, a luta era contra a política de concessões promovida pelo Governo Federal, que visava a distribuição de emissoras aos seus apadrinhados políticos.

Pouco tempo depois, o conceito de rádio livre chegava à capital de São Paulo. No dia 20 de julho de 1985, era levada ao ar a Rádio Xilik. A iniciativa foi de alunos da PUC-SP. As transmissões partiam do campus daquela faculdade. A Xilik já tinha uma forte sustentação ideológica. A principal influência de seus organizadores foram as experiências européias de rádios sem concessão, principalmente as da Itália e da França.

As transmissões da Xilik começaram em plena Nova República. Mesmo com a redemocratização, a política de distribuição de concessões continuou a mesma. Rádios e TVs para os aliados do governo.

Uma declaração do então ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães é emblemática:

“Preferimos dar as TVs e rádios aos amigos”.

A Xilik não reduzia a sua militância na luta pela democratização da comunicação apenas com as emissões. A rádio soube usar como poucas a imprensa. Comunicados avisando de suas transmissões eram enviados as redações. Com isso, a emissora foi ganhando espaço editorial em jornais e revistas.

Diversas personalidades políticas manifestaram apoio a emissora na época de suas transmissões. Os candidatos Lula e Eduardo Suplicy gravaram manifestações de apoio. Suplicy foi categórico: “a cidade estava precisando disso”.

O Dentel tentou por duas vezes fechar a Xilik, mas sem sucesso. A experiência da Xilik seria o marco inicial para várias outros projetos de rádio livre.

A Rádio Vírus, surgida na mesma época, tem a influência da Xilik, mas tem uma proposta estética mais elaborada. Ela nasceu no Complexo Hospitalar do Hospital das Clínicas, de São Paulo. Suas transmissões aconteciam a partir do quarto dos médicos residentes. A área de atuação era a região em volta do HC.

Além de estudantes, a radiodifusão livre atraiu também grupos ligados a partidos políticos. Em abril de 1986, ia ao ar a Rádio Dengue, colocada no ar por simpatizantes e militantes do PT (Partido dos Trabalhadores). A emissora não tinha sede fixa, mas transmitia sempre para a região da Barra Funda.

Em algumas ocasiões, seu sinal era captado em outras regiões do centro da cidade, como a Luz, Santa Efigênia e Santa Cecília.

A Dengue era uma emissora jornalística. A música era deixada para um segundo plano. Nas eleições para governador do Estado na época, a rádio teve um papel fundamental ainda que estivesse comprometida com o partido. Mas nem só de política vivia a Dengue. Ela participou ativamente das campanhas de vacinação contra a pólio. A participação foi tão ativa que chegou a ganhar um prêmio do governo do Estado da época pela prestação de serviços na ocasião.

O marketing da Dengue era agressivo, distribuindo adesivos junto aos moradores da região e também pela divulgação boca-a-boca.

Outra campanha da qual a Dengue teve ampla participação foi contra o fechamento do Pronto Socorro da Barra Funda, segundo o decreto do então prefeito Jânio Quadros. A emissora ajudou a organizar uma passeata de protesto. O barulho foi grande e o resultado positivo. O PS não foi fechado e funciona até hoje.

A Dengue primava também pela irregularidade das transmissões. Poderia transmitir por duas semanas seguidas e ficar outras cinco sem ir ao ar, assim como as suas “co-irmãs”. Tudo para driblar a fiscalização do Dentel.

Nem só de rádios com conteúdo político viveu o movimento de rádios livres. Havia estações de caráter comunitário. Sem ligações com nenhuma organização e despidas de ideologia política. Um desses exemplos é a Rádio Seilá. O seu principal projeto era estabelecer contato com os moradores do bairro do Ipiranga (de onde transmitia) e levar ao ar os seus anseios, as suas necessidades. Tudo isso temperado com música, muito humor e debates.

Outra emissora que se destacou foi a Rádio Totó Ternura, de alunos de comunicação da ECA-USP. O humor era a marca registrada da Totó. O principal patrocinador era a marca de dentifrício Dentel (uma brincadeira com o departamento de telecomunicações da época). Do seu elenco de locutores se destacariam figuras como Lessie, a sexóloga; Rex Humbard, o cão pastor; Rin-Tin-Tin, o cão policial e Snoopy, o correspondente nos EUA. Uma rádio feita só por cachorros ilustres. O nome, aliás, vem de uma brincadeira com um dos apelidos de Antônio Carlos Magalhães, na época ministro das Comunicações: Toninho Ternura.

Na mesma época, no Rio de Janeiro, estavam sendo colocadas as primeiras emissoras livres no ar. A Rádio Frívola City começa a transmitir em 30 de agosto de 1986 e foi uma das primeiras a fazer a analogia com a luta dos que estão sem terra: “a reforma agrária na terra fracassou, foi reprimida. Nós estamos lutando pela reforma no ar”. Inúmeras rádios livres foram colocadas no ar nesse período.

Algumas deixaram história para contar. Outras experiências não chegaram até os dias de hoje. Mas o que importa é que todas vinham com uma só motivação: a luta pela democracia na comunicação. Nos anos 90, o movimento daria uma reviravolta importante em sua história. Para saber o que aconteceu, primeiramente é importante conhecer a história da Rádio Reversão.

A Reversão operava na Vila Ré e seu sinal atingia num raio de 10 quilômetros. O número de ouvintes se aproximava dos 800 mil, segundo dados da própria emissora. A proposta da rádio era anarquista. O jornalista Léo Tomaz, seu idealizador definia: “o nosso projeto é de autogestão, de livre pensamento e liberdade de gestão. Somos pela existência de todas as tribos, incluindo a nossa”. O slogan levado ao ar era emble mático: “Reversão FM 106,5, a sua rádio livre; livre como todas gostariam de ser”. A proposta da rádio era levar aos ouvintes a programação musical de bandas da cidade, privilegiando as da zona leste, área de atuação da Reversão.

Os recursos financeiros vinhas da Casa de Cultura. Como o próprio nome já diz, é um espaço cultural com bar, música ao vivo e espaço para exposições.

A Rádio Reversão, assim com a Xilik, foi uma das emissoras que utilizou bem a imprensa para passar os seus ideais e anunciar as emissões.

A opção feita pelo independente e alternativo feita pela Reversão era radical como mostra a abertura de uma reportagem publicada pelo Jornal da Tarde em 1991: “Nesta FM, Gil, Chico e Caetano são proibidos. Bossa-nova e samba de morro, nem pensar. E os músicos de outros estados estão definitivamente banidos de uma programação musical que alterna rock inglês e americano com fitas-demo “made in Zona Leste”. Pode parecer estranho ter a Reversão num movimento que buscava a democracia. Mas a emissora era bem peculiar. Não tocava músicas que estavam “vinculadas a urbanidade”. Léo Tomaz explicou em uma entrevista a sua posição. Para ele, os artistas consagrados “cumpriram o seu papel em determinado momento, mas não podem servir de tampão, de crivo para a produção cultural”. Tomáz até tem razão, mas isso não pode servir de justificativa para uma censura as avessas. O discurso ideológico da Reversão beirava a arrogância: “Não queremos ser ouvidos, queremos nos expressar”, dizia Léo. “Não há nada mais democrático que um botão”, dizia outro integrante da equipe de apresentadores.

Mas Léo Tomaz e sua Reversão não entrariam para a história das rádios livres no Brasil por causa de sua programação diferenciada.

A rádio teve os seus equipamentos apreendidos pela Polícia Federal em 1991, a partir de uma denúncia feita pelo Dentel. “O fundador da rádio infringiu o Código Nacional de Telecomunicações, funcionando sem licença do governo federal”, disse à época Itanor Neves Carneiro, chefe do Departamento de Ordem Política e Social da Polícia Federal. Tomáz era indiciado no artigo 70 do Código Brasileir o de Telecomunicações.

O processo se arrastou por quase três anos. A expectativa era grande. A sentença, em qualquer das possibilidades, poderia criar um fato histórico na história do movimento de rádios livres. Em março de 1994, o juiz Casem Mazlom (obs. o mesmo que julgou o caso Lalau) divulga finalmente a sentença: Léo Tomaz é inocente. Estava criado um precedente importante para os futuros processos. Segundo o juiz, não há crime em se colocar rádios não-autorizadas, sem fins lucrativos e sem motivações político-partidárias.

Depois do desfecho desse processo houve uma explosão no número de rádios livres na cidade de São Paulo. Com a jurisprudência na lei, houve tranqüilidade necessária para que se multiplicarem as emissoras. A fiscalização poderia até apreender os equipamentos, mas a batalha jurídica terminaria, em grande parte dos casos, em absolvição das pessoas envolvidas.

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